sábado, 15 de janeiro de 2022

Retirado da página do Facebook de Luis Osório

POSTAL DO DIA
Simone de Oliveira
1.
Estive esta semana em casa de Simone.
Falámos longamente, coisas nossas.
Entreguei-lhe o Prémio Carreira.
Uma escultura do magnífico João Sotero que é, antes do mais, um agradecimento por tudo o que nos ofereceu a nós e ao país.
2.
Estive com ela e também lhe agradeci.
Fi-lo em nome da generalidade dos que tornaram esta página um lugar de encontro e tolerância. E em meu nome, claro.
Simone é o exemplo máximo de uma mulher que esteve sempre à frente do seu tempo.
Foi feminista quando não existia espaço para o feminismo.
Abandonou o marido que a maltratava e denunciou-o quando tal parecia impossível de ser feito – estávamos no final da década de 50 ou no princípio da década de 60, imaginam o que isso era?
Mas ela queria ser livre.
Poder cantar.
E foi com os filhos atrelados – contra a opinião dos pais, contra o boicote das revistas, contra os olhares das pessoas na rua que a viam como uma mulher desgraçada, um caso perdido.
Ela queria ser livre e foi.
3.
Por isso, já uma estrela, não teve problema em aceitar o convite de Ary dos Santos para cantar “A Desfolhada”.
Foi a quarta escolha pois ninguém aceitava dizer aquele verso…
Lembram-se?
“Quem faz um filho, fá-lo por gosto”
E ela aceitou.
Ganhou.
E o país rendeu-se perante o espanto de um regime que já abanava por todos os lados.
4.
Muitos a tentaram amedrontar.
A própria Amália tentou que fosse menos livre.
Tentaram rebaixá-la e vaticinaram-lhe a morte artística várias vezes.
Quando perdeu a voz.
Quando combateu um cancro que parecia fulminante.
Quando a viram destroçada com a morte de Varela Silva, o amor da sua vida.
Ou destroçada, muitos anos antes, com o fim do romance com Henrique Mendes, porventura a paixão da sua vida.
Quando pisou o palco como atriz muitos abanaram a cabeça.
Mas ela ganhou.
Quando apresentou programas de televisão exatamente a mesma coisa.
Mas ela mostrou como se fazia.
Quando ficou sozinha com mais de 70 anos.
E com mais de 75 e de 80.
Mas ela continuou e sempre forte, bonita, implacável.
Sem deixar de fazer o que lhe apetece fazer.
Fuma, acompanhada é bem capaz de beber um whisky, com uma boa conversa adora ir para a cama já de manhã.
5.
E continuou a cantar.
Com a voz mais rouca – “Desfolhada”, “Sol de Inverno”, “No Teu Poema”
Com a voz mais cansada soube transformar o seu modo de cantar e surgiu ainda mais forte, intensa, poderosa.
Continuou a cantar e a ser o que sempre foi: uma mulher livre, uma mulher forte, uma mulher que é um exemplo para todas as pessoas que em algum momento da sua vida acham que não é possível, que não conseguem ou estão condenadas.
Estive esta semana com Simone de Oliveira e ofereci-lhe uma escultura.
Um ato simbólico que não tem comparação com tudo aquilo que ela nos oferece há mais de meio século: uma enorme vontade de viver, uma enorme vontade de lutar, uma enorme sede de liberdade e coragem.
Ah, e um enormíssimo talento.
Obrigado, minha querida Simone.
LO
Pode ser uma imagem de 1 pessoa e interiores

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