sexta-feira, 10 de setembro de 2021

De:Luis Osório da sua página do Facebook

POSTAL DO DIA
Miguel Sousa Tavares
1.
Miguel Sousa Tavares escolheu a Visão, e o excelente Pedro Dias de Almeida, para anunciar o fim da sua carreira jornalística.
Fê-lo na semana em que foi atacado, um pouco por todo o lado, pela “pergunta” que fez a António Costa…
… imagine, senhor primeiro-ministro, um jovem que ganha 2700 euros no seu primeiro emprego…
Fê-lo nos dias em que tem sido criticado, um pouco por todo o lado, pela sua arrogância, as suas certezas, a sua agressividade.
2.
Um anúncio que dividiu as águas.
E que foi tratado como mais um acontecimento que tem a importância num dia e se desvanecerá no dia a seguir.
A polarização deste nosso tempo, a violência verbal potenciada pelas redes sociais, depende da animação em permanência, depende do modo como tudo se mede pelos instintos primários.
Mas não.
Este momento não é mais um momento. A figura que hoje se despediu marcou o seu tempo e está longe de ser uma figura menor ou inexpressiva.
3.
Miguel não é isso.
Na verdade, é o contrário disso.
Não é – nem nunca foi – bonzinho.
Sempre foi – isso sim – alguém que viveu depressa, que viveu com uma enorme sede de beber o que a vida lhe poderia dar.
Não é – nem nunca foi – justo.
Sempre foi – isso sim – alguém que viveu como se fosse absoluto, como se a vida fosse um exercício entre a paixão com que se ama e a coragem com que se combate o que se detesta ou odeia.
Miguel não é – nem nunca foi – o que se escondeu ou se deixou acomodar a privilégios, benesses ou convites que pudessem beliscar a sua liberdade que considera a única coisa que verdadeiramente tem.
4.
Miguel foi sempre igual a si próprio.
Foi inclemente e tornou-se insuportável para muitas pessoas que dele gostavam ou que com ele tinham uma relação de amizade ou companheirismo.
Conto-vos uma pequena história sem qualquer importância.
Quando dirigi o Rádio Clube o Miguel magoou-me em duas crónicas do Expresso ou no Público, já não me lembro – naqueles dias achei que fora injusto e violento.
5.
Foi sempre na televisão, nos jornais ou em tudo o que disse ao longo da sua vida pública um indomável individualista.
Diabolizou os comunistas.
Odiou Cavaco Silva o que fez com que os socialistas dele se aproximassem.
Mas quando os socialistas se aproximavam atacou-os sem piedade.
Como atacou o Bloco de Esquerda ou o CDS ou a Iniciativa Liberal.
Esse indomável espírito de independência nunca teve a ver com o respeito pelos códigos deontológicos da profissão – conhecendo um pouco do que é, do que pensa e de onde vem, tratava-se apenas de respeitar a sua essência.
6.
Filho de Francisco Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner nunca precisou de um e do outro para se tornar numa figura bigger than life.
E é esta pessoa que não pode ser reduzida, como tem acontecido nos últimos dias, a uma figura menor. Reduzida, em muitos dos casos, por pessoas que nem sequer sabem o que ele foi ou representa ou que não valem um caracol.
Miguel Sousa Tavares revolucionou a forma de fazer jornalismo em televisão.
Fundou com Barata Feyo a Grande Reportagem e assinou algumas das mais formidáveis histórias feitas por um jornalista português – e fê-lo arriscando a vida.
Como entrevistador foi o responsável por um dos mais relevantes programa de entrevistas em televisão – o 20 Anos 20 Nomes – ou por alguns dos debates políticos mais conseguidos; moderou por exemplo o debate decisivo entre Mário Soares e Freitas do Amaral, em 1986.
Escreveu romances e livros que não deixaram ninguém indiferente e um deles tornou-se no romance que mais vendeu nos últimos 50 anos (Equador).
7.
O homem que hoje celebro é a antítese de um tempo.
Insuportável, visceral, injusto.
Mas corajoso, brilhante e surpreendente.
Contraditório, arrogante e maldisposto.
Mas livre, culto e desarmante.
Um homem que vive a mil à hora como se cada dia pudesse ser o seu último.
Um homem com vários casamentos, vários amores, várias desilusões, várias amizades quebradas, vários momentos de tudo ou nada, várias quedas, mas também várias redenções.
Não me peçam para dizer mal de um homem que deixou esta marca.
Não me peçam para dizer mal de uma ovelha que sempre viveu à margem de todos os rebanhos.
O que pensa, e o modo como defende tantas vezes o que pensa, não vai na maioria das vezes ao encontro do que eu penso ou defendo, mas o que isso importa?
O que importa é ver a floresta que construiu e não as árvores que destruiu à volta – porque alguém como ele destrói sempre árvores à volta, é o preço a pagar pela liberdade de mandar à merda quem o chateou ao longo do caminho – e nisso, é justo dizê-lo, nunca fez distinções entre anónimos e poderosos, foi democrático nessa arte tão rara de não se importar de viver à margem.
Faz uma boa viagem, Miguel.
O que importa é sempre o caminho, o balanço entre o deve e o haver.
Tudo valeu a pena.
LO
Pode ser uma imagem de 1 pessoa e interiores

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